HETEROTOPIAS DE MIM
Série do livro Guerra
Divã
Ouço tocar um fado nela. Ela mora no subsolo na rua Ana Cristina Cesar; vem amargando convicções e incertezas acerca da morte, do sexo, da escrita, família, da vida, mas...
Entorpece-se de silêncio. Não há meta-palavras, metáforas, metas.
São cacos-letras onomatopaicos estilhaçados. Gemidos,
dor.
Gotas de sangue paradas em seus olhos a ponto de jorrarem em meu divã,
mudo.
Manchar meu tapete
branco,
branco.
Não a suporto, não mais me suporto. Ela quer me segurar, quer me levar com ela.
Ela me destrói!
Ela deita-se no divã, muda.
Não mais aguentava vê-la de frente.
Ela me olhando, não me olhando – embotada-sedutora.
E eu?
Eu precisando escrever, fazer alguma coisa.
Minhas unhas já sem o esmalte, as cutículas arrebentadas.
Eu sem lugar no meu lugar. Que lugar é o meu?
Que ser é este a minha frente? O que temos em comum?
Por que eu fui ser analista? Trabalhar com a língua?!
Antes estivesse permanecido na boca da noite, penetrada por outro objeto que não
a fala.
Ela não mais fala há três meses! Por que fui colocá-la em análise?
Passei a escrever às suas costas. Quem está a minha frente?!
Eu às suas costas refletindo, repensando, remoendo, ressofrendo, interpretando...
O quê?!
Música: Panda chant I, Meredith Monk - Do you be, 1987.
Teatro
e aquela cena que eu propus dirigir não ficou boa.
Você no alto da escada e eu, embaixo, gritando – a voz falhava.
Na cena seguinte você indo embora...
Esse monólogo pela madrugada nunca tínhamos encenado.
Tentamos Dias felizes, bem sei. Descartamos Romeu e Julieta, difícil traduzir.
Sonhei com a última cena: não conseguiríamos representá-la.
Criemos nossa dramaturgia.
Mas antes do texto a luz:
âmbar.
Antes da luz: música. Num clima irônico com solavancos de puberdade.
Assim, meio bobo mesmo para enganar o espectador.
Nas capas dos jornais: GUERRA LÍRICA
Fale com aquela sua amiga jornalista que existem duas formas de canonizar
nosso teatro: sair na capa do Caderno de Cultura de São Paulo ou morte prematura.
Diz ainda que ainda optamos pela primeira.
Antes de tudo: os corpos; mas,
não consigo vê-los.
Amizade
Daqui vejo apenas uma parte de tua perna.
Meias brancas, pelos longos.
Ouço teu ressonar leve e cândido.
Dormimos, sonhamos juntos estar num país estranho, sem idioma.
O corpo pediu mais amor, não soubemos dar.
Meu sexo bélico em riste desarma,
desama?
As mãos acesas, atentas, tentam em vão tocar teus lábios, sábios de ternura a dizer: amigo. Palavra sigilo e nudez que ao ser pronunciada nos silencia.
O café da manhã será sempre o mesmo.
O cigarro, quem sabe, estará apagado.
Uma curta repetição, outra série ainda maior:
o acaso ensaiado para vivermos a vida como um teatro
e amor sem intercursos.
Música: Quase em silêncio, Rafael Macedo - Quase em silêncio, 2009.
Livro
A mão sobre o papel e
tão-só
vejo
a sombra
de uma arma.