LÍNGUA-PEDRA
Série do livro Língua
Testamento
quero requintar minha escrita
escrever em línguas
latim por exemplo
comunicar com quem além dos deuses?
meia dúzia de intelectuais
não não quero mais
meu tio falava hebraico
construiu uma bicicleta com asas
saltou do prédio e morreu
minha tia-avó recebia uns espíritos
que falavam alemão
morreu entalada comendo pão de sal
eu que não morri ainda
quero escrever em minha língua
lavrar em cartório
imortalizar-me quae sera tamen.
Este poema integra a antologia Portuguesia, Belo Hte: Anome Livros, 2009.
Confissão
a chuva caía e eu não podia ir embora
tia Clarice falou pro primo Alfredo e
eu ouvi tudo
– êta menino esquisito! não sei de onde que tirou isso?
– tirou o quê mãe?
– essa mania de ficar com cara de quem perdeu alguma coisa dia- e-noite-noite-e-dia olhando pra serra... até dormindo
– é saudade mãe
– saudade do quê fio?
– não sei não mãe é um vazio vontade de abraçar de sair correndo até no alto do Pico da Bandeira, dói é na alma mãe...
– vai brincar com sua prima vai!
eu fui embora correndo
toda molhada
fui escrever pra não esquecer
achava aquilo tudo tão bonito sem saber o que era
tia Clarice que me perdoe
mas eu quero a serra a chuva a saudade a escrita e o primo Alfredo.
Este poema, em forma de plaquete, circulou nos ônibus coletivos de Belo Hte.
Projeto Leitura para todos do núcleo A Tela e o Texto/UFMG; BH-Trans, 2005.
Expressivo
pelo pai
o menino foi presenteado
um recém-desmamado cãozinho
batizou flai
foi alegre demais
o menino não estava mais só
ô fly! ô fly!
fly pra lá fly pra cá
ô fly! ô fly!
fly pra cá fly pra lá
pela noite encoleirado
saltou do terraço
na ânsia de encontrar seu dono?
morreu enforcado
o menino encolerizado
fez o mesmo ao acordar
p/ Luciano Amaral
Este poema integra a antologia Portuguesia, Belo Horizonte: Anome Livros, 2009.
Alógica
I
– Vi na televisão que os eulopeus pensam
que o “movimento dos sem-tela” é elo de tladução,
tamanho é o tamanho do Blasil;
disse o menino Cebolinha.
– É... Lá em casa nóis num temo televisão,
‘tamo no movimento;
disse o menino Chico Bento.
II
– Vi no ládio que o Maulício de Sousa ‘tá sendo canonizado.
– É... Lá na fazenda do tio Zé Pio tamém
tão canonizando tudo.
Vai tê inté água de cima, amém!
III
– Vi na net que estão lançando Fale-well,
livlo de poesia do Dlummond.
– Ocê disse poesia? Até qu’enfim.