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Ressonâncias
uma poética do desespero
 
 
p/ Ana Cecília Carvalho
 

II Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, Belo Hte, 2002

 

FICHA TÉCNICA:

 

Dramaturgia, cenário e trilha sonora não original: Gustavo Cerqueira Guimarães.

Direção, atuação, figurino e iluminação: Adyr Assumpção.

Vozes em off: Letícia Castilho.

Direção de estúdio e assistência de direção: Ernani Maletta.

Ressonâncias musicais: Elis Regina (Lourenço Baeta/Cacaso) e Meredith Monk.

Ressonâncias literárias: Al Berto, Ana C., Ana Cecília Carvalho, Ericson Pires, Sigmund Freud, Jaques Lacan, Nicole Berry.

 

 

 

 

PERSONAGENS:

analista e analisanda (andróginos).

 

CENÁRIO:

consultório de psicanálise: banheira cheia d'água substituindo o divã; atrás, um assento flutuante.

 

 

 

 

 

ATO ÚNICO

 

 

 

analista a escrever. sugere-se que os gestos, os silêncios, os monólogos (pensamentos) e

os diálogos da analista e analisanda sejam, por vezes, justapostos (ressonantes),

através de variados ritmos e sobreposições vocais e gestuais. sugere-se também

que essas ressonâncias sejam refletidas  nos objetos e na música.

 

 

 

Ressonância (al berto em off) – “no centro da cidade um grito. nele morrerei, escrevendo o que a vida me deixar. e sei que cada palavra escrita é um dardo envenenado, tem a dimensão de um túmulo, e todos os teus gestos são uma sinalização em direção à morte” [1].

 

Analista – embora seja sempre absurdo morrer.

insisto nessas palavras e continuo a escrever

infância acorrentada à família

represada

                  retesada

                   re               

 

família

uma exilada faminta impelida a

lançar-se na busca do amor à vida

assim de shot de short

enfiado no rego

pra chamar a atenção do macho

assim

conheci a morte

o corte forte de

encontros vários imortais

naquele dia cataclísmico

também me fuzilaram

naquele dia 11 de setembro no porto oito dias após meus anos

 

não exijam de mim

sou o fim do livro mal lido

conto vários recontros

bagaceira

 

procurasnãotenhonome

 

procuras

não tenho nome

 

talvez seja mulher                           moro na fronteira

no meio

 

transpiro muito

 

continuo

 

          tive avôs a voz de pai de manhã irmãs

água café cartilha canto

o estômago bem

dois segredos a revelar

uma paixão por amigo

aprendi minha língua nativa de pedra

aos tropeços e

          quê das

          vírgula

não me aprisiones em sua leitura

sou louca   preciso

e

posso gritar agora

agora um grito um grito

grito

 

Analisanda – tenho um punhal fincado nas costas

 

Analista – extraído mata

 

e a família

 

                                      humm?

 

humm?

 

humm?

 

insisto nessa angústia e continuo a escrever. há tempos escrevo na mesma folha!

 

ouço tocar um fado nela. ela mora no subsolo na rua ana cristina césar; vem amargando convicções e incertezas acerca da morte, do sexo, da escrita, família

   da vida, mas se entorpece de silêncio. a melancolia a devora. não há metapalavras, metáforas, metas. são cacos-letras onomatopaicos estilhaçados. gemidos.              

   dor.

 

 

 

gotas de sangue paradas em seus olhos a ponto de jorrarem em meu divã

 

mudo

 

manchar meu tapete

 

branco                       branco.

 

não a suporto, não mais me suporto. ela quer me segurar, quer me levar com ela. ela me destrói!

 

Analisanda/Analista (alternando e sobrepondo as vozes) – minha cabeça não para?! às vezes me pergunto e já não consigo nem mais escrever e

 

sinto e saio e sonho ou já não sei ou sorvo e sacio ou simplesmente sumo.

 

Analista – eu exclamo, não tenho outra saída! essa semana não passa ou simplesmente sumo.

 

Analisanda – talvez seja mulher                                         

 

não tive pai

 

dois segredos a revelar

 

uma paixão por amigo

 

aprendi minha língua nativa de pedra

 

aos tropeços e quedas

 

         ,

 

não me aprisiones em sua leitura

 

sou louca   preciso

 

Analista – o que seus sonhos dizem?

 

Analisanda –  ...??? (silêncio). sonhos?! sonhos não são com flores? como posso sonhar se estou dentro de um pesadelo ininterrupto. (silêncio) amanhã foi uma semana difícil. não menos que outras. a bílis é minha mãe. ela vai se casar de novo. será que sou igual a minha mãe? (silêncio) será que sou mulher? não aguento mais fumar. (silêncio). eu quero me lançar na noite, mudar de país, amar, entende? tenho trinta e um anos... não consigo trabalhar. (silêncio). quero sair deste lugar, mas não consigo. acabar com esta dor, entende? (silêncio) a ana não quer mais namorar (silêncio).

 

Analista – ela não sonha, emudece. sonho por ela e vou para o porto reencontrar meus antepassados, as minhas madrugadas, pensando ali estar o amor.

 

talvez não esteja em parte alguma. mas algo pulsa. meus homens, mulheres.

 

Analisanda (cantando baixo)

– ah, como eu tenho me enganado

como tenho me matado

por ter demais confiado

nas evidências do amor. [2]

 

Analista – você tem falado muito de sua mãe, continue.

 

Analisanda (continuando a música)

como tenho andado certo

como tenho andado errado

por seu carinho inseguro

por meu caminho deserto

como tenho me encontrado

como tenho descoberto

a sombra leve da morte passando sempre por perto

e o sentimento mais breve

rola no ar e descreve

a eterna cicatriz

mais uma vez

mais de uma vez

quase que fui feliz.

 

Ressonância (elis regina em off)

– a barra do amor

é que ele é meio ermo

a barra da morte

é que ela não tem meio-termo.

 

Analista – fale de sua mãe.       

 

Analista/Analisanda (alternando e sobrepondo as vozes) – será que quero me deitar com ela? 

Não não não.

 

Analista – fala de sua mãe, não fala de sua mãe. fala de sua mãe, não fala de sua mãe.

 

Analisanda – minha mãe não conversa comigo.

 

Analista – minha mãe não conversa comigo e... se ela tivesse encontrado outra analista noutro lugar qualquer?

 

estou atrelada em sua rede. ela está aqui, eu estou aqui e...

 

Analisanda – não sei até hoje por que eu vim te procurar? mas não se preocupe, sei que não pode me curar. quero só te ver. mas também quero que me veja. eu quero é... eu quero ser velada. meu canto-pranto precisa ser ouvido... (silêncio/risos) talvez eu te dê alta.

 

Analista – ficamos por aqui hoje.

 

 a cena se repete: analisanda “entrando” e “saindo” da banheira-divã.

trecho musical em ritmo alucinante entrecortado.

 

 – ok.

 

        – (música).

 

– ficamos por aqui hoje.

 

         – (música).

 

– até amanhã.

 

         – (música).

 

– até ontem.

 

Analista – eu não sei mais o que fazer. ela quase não fala, ela não é coerente! hoje eu falo, hoje eu falo que vou tirar férias e volto para o porto, justificando que...

 

não preciso justificar, vou! nada me prende aqui, a não ser...

 

ela está deitada no divã, muda. não mais aguentava vê-la de frente. ela me olhando, não me olhando. embotada-sedutora. e eu? eu precisando escrever, fazer alguma coisa. minhas unhas já sem o esmalte, as cutículas arrebentadas. eu sem lugar no meu lugar. que lugar é o meu? que ser é este a minha frente? o que temos em comum?

 

por que eu fui ser analista? trabalhar com a língua?! antes tivesse permanecido na boca da noite penetrada por outro que não a fala, que não me fala.

 

ela não mais fala há três meses! por que fui colocá-la em análise? passei a escrever em suas costas, quem está a minha frente? eu em suas costas refletindo, repensando, re-sofrendo, interpretando o quê?! recorro aos teóricos, mas hoje não me dizem nada. procuro os poetas.

 

por que ela não fala?

 

ela não fala! ela me exclui! ela não fala!

 

Analisanda – ela não fala, eu não falo não.

 

Analista – quem não fala?!

 

estou para te avisar já há algum tempo, e hoje, com certa antecedência,

eu... eu vou voltar para a cidade do porto.

 

(dirigindo-se à analisanda).

 

estou para te avisar já há algum tempo, e hoje, com uma certa antecedência... eu... eu vou voltar... eu vou me mudar (silêncio).

 

ela não fala, geme às vezes.

 

Analisanda (taciturna) – quero partir!

 

Analista – ela falou? até que enfim ela falou! enquanto ela não falava, eu falava, falava, falava por ela, escrevia por ela, escrevo por ela! ela fala! ela falou?

 

disse algo?

 

Analisanda (grave grito) – quero ir embora!

 

Analista – eu não posso falar agora, a trairia, me trairia. não quero falar, tenho que escrever. eu não posso me deixar levar, tal frase foi endereçada.

 

mas qual não é?!         

 

faltam-me palavras, palavras plenas! difícil acreditar. onde estão? recorro aos poetas.

 

Analisanda – (gesto de aproximação, olhar).

 

Analista / Analisanda (alternando e sobrepondo as vozes) – frente a frente, enfim, jorrando todas as palavras, falamos com os olhos, que não é mudez.

 

Analista – (gesto de aproximação, mãos).

 

Analisanda – ela quer me abraçar, mas alguma hora é a hora e agora.

 

despeço do silêncio e dos restos noturnos. iminência de um grito, mau cheiro. um pouco de luz e ainda vejo alguns corpos.               

                                             a vida neste instante: tiro das costas aquele punhal e

 

aquelas moscas que sobrevoaram o cadáver do meu pai, em mim retornam.

 

Analisanda /Analista (alternando e sobrepondo as vozes) – partindo, nossos olhos sorriem na distância.

 

Analisanda – (analisanda afunda na banheira-divã).

 

Analista – naquela noite uma luva de angústia me afagava o púbis.

algo morreu em mim.

é preciso calar, mas como?

 

 

 

 

 

[1] AL BERTO. Al Berto na Casa Fernando Pessoa. Lisboa: Movieplay Portuguesa, 1997.

 

[2] CACASO; BAETA, Lourenço. Meio-termo. In: REGINA, Elis. Transversal do tempo, 1978.

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