
TERRITÓRIOS
Série do livro Guerra
Recorte urbano
Toxidez ao entardecer no bairro Santo Antônio. Jovens desamparados à procura de repouso?
Ana abre a porta de tua casa e tudo que vê é um mundo desordenado na alta alucinação de tua cisma,
estado máximo de tua mágoa.
Por vezes acreditara que o ritmo seco dos diários poderiam lhe salvar.
Apenas uma mensagem via celular quebra o silêncio:
Me ausentarei do encontro de amanhã em sua casa farei uma série de exames oftalmológicos talvez tenha de usar óculos estou em dúvidas das cores das lentes a escolher abraço
O teu próprio ser está, enfim,
regressando.
As pálpebras inchadas da vigília, rosto pálido, escreve:
é assim?! desabam pele do rosto e sonhos? se não vai dar pra ser, não vai dar mesmo!, não escolhi este território e tento, em vão, mudar a pergunta.
Lentes lilases escuras protegem Ana do espelho. Pensa como o corpo resistira a tanto:
muito tempo só.
Estivera em lugares obscuros. Não queria que a empurrassem para mudar de lugar.
Deitara, deixara de existir.
Antes grafara:
Só agora cri que foste embora. Pedi teu corpo emprestado: despedida sem abraço. Do nosso amor outonal: saudade.
Toquei o sexo para sinalizar o desejo:
imagem da despedida.
Desisto das interrogações e a alteridade deve desaparecer dos meus escritos.
Não nos submetamos a este tóxico-amor.
Do not take another man's wife II, Van den Budenmayer Zbigniew Preisner, Rouge, 1994

Bellagio, 2009
p/ João Gilberto Noll
Hoje me lembrei daquele homem lá do Sul cujo aniversário é em abril, 15 se não me engano. Quase nunca memorizo tais datas, todavia, hoje, parece ser de fato um dia especial: sonhei com o cara.
Ele me beijava a fronte e me dizia segredos. Mas as palavras não diziam nada, uma língua estranha – un modo italiano più o meno arcaico – soprava um calor suave ao pé do ouvido numa noite de vento frio e forte num 15 de abril.
Por que nesse dia?, perguntei mesmo em estado onírico. Estaríamos nós comunicando através de ondas telepáticas? Estaria ele conectado a mim numa consonância de vozes?
Anjo das ondas?
Já acordado percebia em sua coxa virilha púbis a quentura do líquido vazado de amor. Ou seria igualmente uma forma impregnada desse afeto que não experimentava desde aquele último encontro num quarto de hotel numa cidade lacustre ao norte da Itália?
Lá, registrariam eles numa única troca de correspondência, viveram uma espécie de magia que a memória apagaria. E agora revivem de súbito, dormindo, essa sensação seguida de gozo.
Teria eu encontrado o meu homem e o deixei passar como um vento de abril?
Já não sei se sonho, quem fala, já não sei quem sou.
Preciso me levantar e saber onde estou; os espaços, de certo, contornariam o meu estado atual: abro os olhos e miro os meus pés para incidir a dimensão do corpo, miro as mãos, acamo melhor a cabeça, aliso os lábios, me levanto e vou me lavar...
Ele parece viver apenas em páginas de livro.
Noto minha sombra no azulejo,
no papel.
Sou um personagem daquele escritor sexagenário que habita em muitos lugares no ofício de se instrumentalizar de pequenas histórias, dando um ritmo diferente do usual à labuta cotidiana. Entretanto, anseio que a morte do herói – eu, no caso – venha logo. Ele é o duplo de mim?
Me projeto no futuro lendo rapidamente as páginas ainda a serem escritas por ele para saber como será o meu fim.
Ao longe,
ao sul,
um canto de sereia.

Guimarães
Na pátria de infância do meu avô
apoderei-me de uma lembrança:
um par de colher cravado nosso brasão.
Separei-o entre mim e meu genitor,
em moradas distintas estão.
Nove meses depois, chega-me
uma colherinha do Japão.
Agora tenho um par, porém,
não vou passar meu sobrenome, não.
Vou partir sem você,
meu filho,
e me perdoe se apenas escrevo,
livro.
No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida;
Na terra, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno.
Luis de Camões