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Édipo ao pé da letra
                                                                                                                 
                                                                                                                 p/ Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa
 

Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, Belo Hte, 2001

 

FICHA TÉCNICA:

 

Dramaturgia, codireção e trilha sonora não original: Gustavo    Cerqueira Guimarães.

Codireção, luz e preparação vocal: Ernani Maletta.

Cenografia e Figurino: Ivana Andrés.

Assistência de movimento: Mônica Ribeiro.

Composição e execução da trilha sonora original: Juliana Perdigão.

Assistência instrumental: Fernando Muzzi.

Visagismo: Mona Magalhães.

Atuação: Carol Romano (Jocasta), Gustavo Cerqueira Guimarães (Édipo  Rei e Crísipo), Ernani Maletta (Laio), Eliezer Júnior (Tirésias), Ana Hadad,  Clarice Barreto, Gilberto Safar, João Rievers e Juliana Perdigão (Coro).

Guto Muniz/Divulgação

 

  ​

PERSONAGENS:

 

Laio – amante de Crísipo, marido de Jocasta e pai de Édipo.

 

Jocasta – esposa de Laio, mãe e esposa de Édipo.

 

Édipo – filho de Laio e Jocasta, marido de Jocasta.

 

Tirésias – velho cego, andrógino e adivinho.

 

Crísipo – amante de Laio.

 

Coro de cidadãos tebanos.

 

Esfinge.

 

CENÁRIO: Caixotes em três tamanhos distintos formando uma escada e outros planos / Tambores / Espelho (moldura de corpo inteiro com papel vegetal)/ Pé de gesso alçado.

 

 

 

 

ATO ÚNICO

 

 

I Canto – Laio

 

 

 

Esfinge, Laio e Crísipo no palco.

 

Esfinge – “Tudo o que se classifica tresanda à morte. É preciso desclassificar-se para sair do comum. É o sinal das obras primas e dos heróis. Um desclassificado eis o que espanta e o que reina” [1]. E, assim, nasce o poema! (sai).

 

Laio e Crísipo numa encruzilhada.

 

Crísipo – Laio, desde o dia em que me tiraste da casa de meu pai para apontar o meu caminho, não quis mais voltar. E hoje sei que desta encruzilhada partirei sozinho (empunha a lâmina).

 

Laio (aproximando-se) – Não, Crísipo! Não! Não me deixes.

 

Crísipo (crava o punhal em seu peito).

 

Laio – Crísipo, das profundezas de tudo que há,

magnanimamente amo os teus pés,

a tua virilha, a tua voz.

Teus dedos vertiginosos inauguram caminhos no meu corpo 

sssssssidero no espaço.

Te amo, extra-homem!

Tua crosta e teus vulcões.

Que venha a maldição, ó destino!

 

(beija o cadáver em teus braços e sai arrastando-o).

 

Coro (entrando) – Laio em sua juventude Crísipo amou, raptando-o de tua casa.

 

Esfinge – Essa história Sófocles não contou.

 

Coro – Foi amaldiçoado por Pêlops, pai do jovem Crísipo, que destinou a Laio o castigo de morrer sem descendentes deixar. Laio casa-se com Jocasta, tornando-se rei de Tebas.

 

Esfinge – Nasce um menino!

 

Coro – Para tentar fugir à predição oracular, perfurou e amarrou seus pés.

 

Esfinge – Édipo, pés inchados.

 

Coro – Ordenando a esposa à prole abandonar.

 

Esfinge – Mas um pastor o salva.

 

Coro – Édipo, pés desatados.

 

Esfinge – Édipo na juventude retornará.

 

 

 

II Canto – As uniões

 

  

Coro imóvel – alusão a imagens gregas. Jocasta se preparando para o casamento.

 

Jocasta (gritando e bocejando) – Tirésias! Vem me ajudar! (silêncio). Zizi, vem logo!

 

Tirérias (da coxia) – Estou indo, majestosa Jocasta.

 

Jocasta (cantando) – “A música na sombra, o ritmo no ar. Um animal que ronda no véu do luar. Eu saio dos teus olhos e rolo pelo chão, feito um amor que queima, magia negra, sedução” [2].

 

Tirérias – Aqui estou de prontidão.

 

Jocasta – Vamos, Zizi, anda logo com este véu!

 

Tirérias – Calma, minha deusa!

 

Jocasta – Não pises na minha calda!

 

Tirérias – Sim, claro, claro, Jojoca.

 

Jocasta – Se eu me embaraçar, o Laio pode não querer mais se casar.

 

Tirérias – Ah, mas isso não, Jojoca, aquele efebo já foi fisgado, parece até estar enfeitiçado.

 

Jocasta – Efebo? O que estás dizendo, Zizi?! Laio é da minha idade.

 

Tirérias – Nada não, queridíssima rainha. Esquece, esquece.

 

Jocasta – Tuas estranhezas sempre me assustam. Ajeita o meu cabelo!

 

Tirérias (ajeitando) – Assim está perfeito.

 

Jocasta – Quem me dera se Laio fosse um jovem, ai ai ai! Zizi, por favor, traze-me um pouco d´água; estou com uma secura na garganta.

 

Tirérias – Majestade, aqui está, sinto-a estupenda, pareço enxergar.

 

Jocasta – Então vamos, Zizi.

 

Jocasta e Tirésias, através de um corredor formado pelo coro,

juntam-se a Laio para o ritual de casamento.

 

Laio, Jocasta e Tirésias (arranjo vocal e tambores percutidos pelo coro).

 

– PeDRa LeTRa, pedra letra, pedra lê, pedra pé.

Pedra letra, pedra letra, pedra lê, pedra pé.

Pedra letra, pedra letra, pedra letra, PeDRa LeTRa.

dra tra pe le ledra petra lê tra pé da.

 

Tirérias (celebrando) – Laio e Jocasta, em nome dos deuses, eu, velho amigo, cego, servo e adivinho, não tenho como impedir a vossa união. O destino vos une!

 

(entrega a Édipo a coroa, a Jocasta um colar).

 

Coro, Esfinge, Tirésias e Jocasta (arranjo vocal) 

 

– PeDRa LeTRa, pedra letra, pedra lê, pedra pé.

Pedra letra, pedra letra, pedra lê, pedra pé.

Pedra letra, pedra letra, pedra letra, pedra letra.

dra tra pe ledra lê tra petra pé da LeTRa PeDRa.

 

Laio dirige-se ao espelho para se coroar. Édipo surge por trás do “espelho”

como um reflexo do pai – efeito de sombra.

 

Coro e Esfinge (estranhando) – Édipo!?

 

                                                                              Édipo?

 

                                                                                          Édipo!

 

Laio se coroa. Édipo, mesmo sem o ornato, o imita. O pai, assustado, recua.

 

Coro (em profusão de vozes) – Não! Não! Não!

Matarás teu pai e desposarás tua mãe!

Teu filho te matará e desposará tua esposa.

 

Esfinge – Maldição!

 

Coro – Matarás teu pai e desposarás tua mãe!

 

Simultaneamente às vozes do coro, Édipo transpassa o “espelho” (papel vegetal) e atira-se em cima de Laio, tira-lhe o manto, a coroa e mata o pai. Tirésias, do alto, tudo “vê”. Jocasta, de costas, sente as dores como se visse a cena. Édipo se encontra com Jocasta. Longo olhar. Beijam-se.

III Canto – A peste

 

Coro (em profusão de vozes) – Não! Não! Não!

Mataste teu pai e desposarás tua mãe!

Mataste teu pai e desposarás tua mãe!

 

Esfinge – Tu sabes, Jocasta, que Édipo é tua prole. 

 

Coro – Tu sabes, Jocasta, da predição do oráculo.

Tu hesitaste em matá-lo quando Édipo nasceu nesta pólis.

 

O casal separa-se violentamente. O coro de cidadãos tebanos é possuído pela peste. Coreografia ao som dos tambores e música alucinante. Todos tapam os olhos com as mãos, giram, param,

destapam os olhos, giram, param, rastejam os pés desnorteados, giram, param, olham.

Interrupção abrupta. O coro sai. Jocasta vai para o fundo, num dos planos.

 

 

IV Canto – Jocasta

 

 

 

 

Édipo – No princípio, o ar apocalíptico.

 

Tirérias – Trevas.

 

Édipo – Tristezas.

 

Tirérias – Trombetas.

 

Édipo – Enunciação maldita.

 

Tirérias – Caos!

 

Édipo – Lixívia.

 

Tirérias – Luxúria! Lexélia.

 

Édipo – Lexiogênico.

 

Tirérias (dirigindo-se a Édipo) – Amorados perdões?!

 

Édipo (a Tirésias) – Sim, perdões!

 

Édipo e Tirérias – Sempre houve culpa, culpados?

 

Édipo de costas, acompanhando o canto da mãe.

Jocasta: – Ó, meu pai! Onde foi que eu errei?

Onde está a gênese de tamanho sofrimento?

Em que léxico encontrar?

Em que língua exprimir?

Por quê? Por quê? Por quê? Por quê?

Qvid? Percchè? Pour quoi?

Bendita seja a hora,

ó Deus dos sete céus,

das sete notas,

                   do arco-íris,

                                                 dos pecados capitais.

                         Descansa e me deixa gozar sem culpa

         ao menos por um dia em teu posto.

Livra-me dos maus pensamentos, das palavras,

das tentações efêmeras da carne,

das letras esfuziantes que me invadem.

Eu quero é

o júbilo da alma,

aparições epifânicas.

Engravidar-me delas e

ter sete filhos,

sete vezes de cócoras.

Arregaçando-me de prazer em parir.

 

Eu quero ainda um homem para cuidar,

monogamia,

bodas de ouro,

orações rigorosamente às seis da tarde,

orquídeas, bromélias, oboés.

No palco da vila,

no palco da vida

ao menos por um dia, Deus meu,

dá-me a glória estelar

de acreditar em parto sem dor,

no casamento e

em outros palcos para além deste.

O espetáculo não pode...

Jocasta coloca uma máscara mortuária que vem do alto.

Tirérias (“vendo” Jocasta morta) – Ó Deus! Édipo! Tua mãe está... Morta!

 

Édipo (expressão de perplexidade) – ?!?!?!         

 

Tirérias – Sim, Édipo! Tu atravessaste a mesma porta por onde teu pai entrou e abrigaste num matrimônio jamais pensado! Para fugir à predição oracular, tua mãe ordenou o teu abandono no monte Citeron, mas foste salvo por um pastor, levado para Corinto e criado como filho adotivo pelo rei e a rainha de lá.

 

Édipo – Mas...

 

Tirérias – Sim, Édipo! Tu matarias o teu pai e amarias a tua mãe (hesitante), como o fizeste (sai). O destino te trouxe a Tebas.

 

Édipo – Ai! Ai de mim! Ai de mim! Eis minha origem, nada poderá mudá-la!

 

(transtornado, aproximando-se de Jocasta)

 

Mãe?! (estendendo a mão).

 

Jocasta (do pescoço tenta arrancar, com dificuldade, o colar com um compartimento que contém “sangue”) – Ai, ai, ai, meu Deus! (dirigindo-se à plateia) Gente, eu falei que isso aqui não ia dar certo! Puta que pariu!!! (consegue arrebentar) Aaaaaaaaah! (entrega a Édipo o colar).

 

 

V Canto – Édipo

 

 

 

Édipo – De agora em diante viverei nas sombras e não reconhecerei aqueles que não quero!

 

(simultaneamente ao black-out, abre o compartimento do colar e molha dois dedos no “sangue”; “perfura” os próprios olhos, vocifera alucinado e caminha para o proscênio. Jocasta e

Tirésias saem. Retorna a luz e os dedos deslizam pela face, no sentido da lágrima).

 

Coro (da coxia) – Vá, Édipo, vá para Colona, vá para Atenas, vá para o Hades, para as profundezas de tudo que há. (sai).

 

Édipo – Esta cidade me atravessa, da goela à nuca,

fazendo sulcos profundos.

O tempo me devora.

Ai, tempo! Ai, ai de mim!

Corrói-me, arranca-me pedaços, definhando-me.

A cada instante, morro, morro, morro.

Morro a toda hora, agora?

Não suporto mais esta cidade – Corinto, Tebas, Atenas –,

sinuosamente contínua.

Quero-te, pólis. Quero-te, cronos. Possuir-te, posso?

Posso!

Posso dar asas a esta dor íntima, bor-bo-le-ta.

Chamar-te de bor, de dor de cor,

de amor, amor-te.

Cravar no tempo ao menos a minha dor.

Meu incômodo por envelhecer

ao olhar no espelho a cara, as rugas.

O cigarro apagando sempre, sempre

minhas pernas doendo.

O pulmão arfante.

Meu corpo metamorfoseando-se.

Quero pousar no morro, perenizar-me.

Explodir em gotas num rito-grito de dor-alegria.

Para tempo! Para coração! Para tudo!

Pólis, te quero pedra.

Cronos, te quero morro.

                                               Morro.

 

Coro e Esfinge – Caminhar, caminhar, caminhar.

Escrever com os pés outrora amarrados,

outrora cravados ao pé da letra,

PeDRa LeTRa, pedra lê, pedra pé.

 

Escrever, escrever, escrever.

Caminhar com os pés outrora amarrados,

outrora cravados ao pé da letra,

PeDRa LeTRa, pedra lê, pedra p...

Coro atravessa lentamente o palco de uma coxia a outra. 

Édipo vira-se de costas, joga ao chão a coroa e caminha, lento,

em direção ao pé alçado na tentativa de alcançá-lo.

 

 

 

 

Esfinge: – É inútil me decifrar. A esfinge está dentro de ti! É inútil me decifrar. A esfinge está dentro de ti! (longa pausa).

 

         

*   *   *

 

 

          No princípio não era nada disso,

          Jocasta pariu gêmeos:

          Édipo e sua irmã Antígona.

 

          O verbo envenena o mito.

 

 

 

 

[1] Cocteau, Jean. A máquina infernal. Trad. Manuel Bandeira. Petrópolis: Vozes, 1967 [1934], p. 85.

 

[2] Rouge, C. de; Mende, G.; Rush, J.; Applegate, M. S. “O amor e o poder” (The power of love). Versão: Cláudio Rabelo. In: Rosana. Coração selvagem. Epic/ CBS, 1987.

 

 

 

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