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CORRESPONDÊNCIAS DE GUERRA

Série do livro Guerra

 

 

 

 

 

  > De: <                        >

  > Enviado: segunda-feira, 27 de setembro 16:20:01

  > Para: <victor.arruda@rio.com.br>

  > Cc: <al-berto@sines.pt>

  > Assunto: do porto

 

 

 

 

Os dias lentíssimos...

 

 

 

Sem ninguém.

 

Escrevo à mão com punhos levemente cortados.

 

Não,

 

não será assim o meu fim.

 

 

 

Relutei em deixar esta carta – comum a quem se presta a tal destino.

 

O sangue derramado nas páginas a prenunciar que vou-me embora para o desconhecido.

 

Esse é um lugar distante do olhar dos outros.

 

 

 

As palavras já não expressam o desespero de compreender o mundo.

 

Hoje, do Porto, partirei.

 

Ninguém encontrará o meu corpo.

 

Não quero velas,

 

sorrisos apenas.

 

Após passar o baque de minha ausência,         entenderás.

 

 

 

Saibas que traguei a vida até o limite suportável. Este tempo não mais significa nada,          cansei,

 

linguagem desgraçada.

 

O sexo só teve algum sentido antes.

 

O durante, menos.

 

E o depois…

 

 

 

Morrer assim de súbito tem sabor inexplicável. Sinto domar a vida pela primeira vez.

 

Um gosto acre de sangue experimentarei à boca – é assim nas películas.

 

 

 

Fumo o último maço de cigarros com tarja preta a anunciar: FUMAR MATA.

 

Digo: que bom, não foram eles.

 

 

 

Os prazeres têm preço e não sei o valor, menos ainda se há escolhas.

 

Pequenas mortes cotidianas foi o que contemplei.

 

Alguns a dizer: a vida é bela. Digo: com a morte à espera.

 

Esse é um lugar distante do olhar dos outros.

 

 

 

Vejo o mapa-múndi em minha agenda, lanço-a ao mar, digo:

 

pisei onde quis, não há mais terras habitáveis.

 

     Hoje,

 

     deste penhasco cairei.

 

 

 

O dia se torna laranja. Antes, do telemóvel, algumas ligações interrompidas.

 

Ouvi vozes amadas, sem despedidas.

 

 

 

Escrevo palavras fáceis e talvez imagines como terminarei esta carta: ainda por dizer, reticente…

 

Não.

 

Terminarei quando o sol se for. Terá um fim.

 

Um lugar distante do olhar dos outros.

 

 

 

Pensas ainda que ritualizei o dia.

 

                Não.

 

Cair nessa armadilha tornaria a dissolução mais difícil.

 

Foi como outro dia qualquer, banal.

 

Escovar os dentes, pequeno almoço, uniformizar-me para sair às ruas, trabalho,

 

falas desnecessárias, a cabeça a pensar.

 

Somente estas últimas horas estão mais distintas.

 

Trouxe um toca-fitas para ouvir músicas.

 

Arrepio-me. Choro. Ondas de paixão. Miragens de corpos amados,                      poucos.

 

 

 

Todos, agora, em ti.

 

 

 

Por ele valeria a pena continuar? Desligo o som.

 

Agora outras vagas clamam meu nome e talvez eu apareça em teus sonhos.

 

Lugar distante do olhar dos outros.

 

 

 

Partiste sem dizer nada.

 

Transbordei-me de silêncio. Substituí tua voz por cavidades, maus cheiros.

 

Teu corpo por um raio de ciúme.

 

O dia está sujo de recordações. O fantasma da morte preenche o vazio que deixaste.

 

             

 

                Não poderia morrer de outra maneira: de amor.

 

 

 

Enterro teu nome atrás do horizonte.

 

Não haveria solução para nós sem a morte do outro.

 

 

 

Quando a clonagem se tornar uma prática comum também não haverá lugar para esta carta,

 

não será compreendida.

 

A identidade e a morte estão numa areia movediça.

 

Vou antes,

 

romântico.

 

 

 

O dia já se torna lilás.

 

                   Distante do olhar dos outros.

 

 

 

Aqui, início do outono. No outro hemisfério, primavera.

 

As nuvens transfiguram-se num revólver, pego-o antes que se dissolva: estilhaçarei meu coração.

 

 

 

O sol se porá onde o teu nome se cristalizou e...

Eu vou junto.

 

Assim nosso amor não tem nome.

 

 

 

Compus este réquiem durante meus trinta anos para tocar hoje ao fim daquele pôr do sol

 

           

 

              

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                                   ...   ou     DANÇO à beira do abismo?

 

    

 

 

 

Música: Prelúdio n. 4, Villa-Lobos, 1939.

 

  

Pro Porto – heterografias de mim

 

 

 

 

 

 

 

 

Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lê para desvendar mistérios e faz perguntas

capciosas, pensando que cada verso oculta sintomas, segredos biográficos.

Não perdoa o hermetismo. Não se confessa os próprios sentimentos.

Já Mary me lê toda como literatura pura, e não entende as referências diretas.

 

Ana Cristina Cesar

 

 

 

 

 

  > De: <gil@lig.com.br>

  > Enviado: segunda-feira, 27 de setembro 16:56:33

  > Assunto: Re: do porto

 

Primeiro fiquei em dúvida se o texto era seu ou daquele poeta lusitano. Depois fiquei em dúvida se vc iria se jogar no Oceano Atlântico. Aí, enfim, resolvi concluir que era mera histeria

do poeta made in Lajinha, ou made in península. 

 

E hoje, eu resolvi partir para um trabalho  bem mais autoral. Tô promovendo uma vibe na Igreja do Belvédère – uma missa suicidária.

 

Fiquei pensando no quanto as palavras de um morto são capazes de dizer.

 

 

 

 

 

  > De: Mary <mary@rj.com.br>

  > Enviado: segunda-feira, 27 de setembro 18:10:00

  > Assunto: Sugestão

 

  

 

                       Penhasco é muito épico.

 

 

 

 

 

  > De: <paco@uruguay.net>

  > Enviado: terça-feira, 28 de setembro 02:34:59

  > Assunto: Re: do porto 

 

 

 

si despertar es resucitar, levantarse de la cama es asumir la cuota de suicidio diaria.

viajé por esas aguas con tu poema...

 

 

 

 

 

  > De: <joaocastilho@seriecega.com>​
  > Enviado: segunda-feira, 28 de setembro 02: 36: 52
  > Assunto: Re: do porto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  > De: <ana.c@rj.com.br>

  > Enviado: terça-feira, 28 de setembro 10:51:38

  > Assunto: Opa

 

Pessoa, li tudo ao som de Third e fiquei louca! Clima meio retrô.

E o “Teatro” também foi lido com dúvidas silêncio e aplausos da plateia gostaram da luz âmbar.

Vieram até com Henry James depois.

E eu pensando: que porra é essa de GUERRA agora, cara?

Mas a noite foi boa. Eu até fiquei meio bêbada.

Teve performance e eu terminei

com meu namorado-lírico que quer ser uma trans.

Queria que você o conhecesse. Ele ou ela poderia aparecer em nossos textos.

Mas eu quero mesmo é parar de funcionar um pouco como a tia que dá aulas de português para ingleses.

Enfim, fiquei um pouco chocada com essa história toda.

 

 

 

-- ---- -- **-- - - -- - ---
Não entrou pelo meu pulso, pousou no meu pulso. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                                       Pós-guerra

 

 

 

  > De:

  > Para:

  > Assunto: reply to author

  > Data:

 

 

      Aprendi que escrever cartas pode ser uma saída. Toda carta é um pouco mentirosa. Revela a solidão.

(...) Elas escondem. Eu gosto. Simulacros. Escrever cartas é não escrever, é falar sem ser ouvido.

Tenho um presentinho pra você. Reply: pacote de sons via tipografia, ruídos. Mas não há mais papel,

há mail: luz que escapa, tela que brilha (escuro), uma garrafinha jogada no mar.

O que interessa é o que vale: não esquecer que estou vivo. Meus dedos no teclado são meus dedos se aproximando de você. Bolinar o invisível, orgasmo telepático, prazer solitário, palavras ligadas em você.

... “e se alma não for o corpo o que será então?”... (alguém já falou isso).

 

Uma carta é sempre uma carta e uma mentira é sempre alguém próximo de alguém.

 

 

 

Ericson Pires

 

 

 

 

 

 

  > De: luisalbertobrandao@esteticadarecepcao.com.br

  > Enviado: sexta-feira, 28 de setembro 16: 20: 01

  > Assunto: Pós-guerra: bandeira branca, amor

 

 

 

Meu caro,

 

Estive pensando bem e concluí que realmente não tem a ver eu escrever o texto, o "Pós-guerra". É claro que continuo lisonjeado por ter sido convidado (e pelas razões para o convite, que você me explicou naquele jantar no Hermengarda). É uma enorme gentileza de sua parte, mas acho mesmo que eu ter escrito a orelha do Língua exige que eu não apareça no livro novo. Como gostei bastante do Guerra (e já lhe disse isso várias vezes), acabei aceitando; mas agora percebo que é melhor, para o livro, que eu “desaceite”. De qualquer maneira, acho que já fiz o mais importante, que é dar uns palpites, e não tenho dúvida de que o trabalho vai ficar muito bom. Gostei da ideia da capa, tipo White Album, o disco mais revolution dos Beatles.

 

A gente vai se falando.

 

Abraço, Luis Alberto.

 

 

 

 

A única coisa que me interessa no momento é
a lenta cumplicidade da correspondência.

Ana Cristina Cesar

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